Passada
as eleições presidenciais o tema do aborto foi deixado um pouco de lado
tanto na mídia quanto no cenário político. Não deveria, uma vez que em
2010 a cada hora ocorria 12 internações por aborto provocado segundo as
informações do SUS. O médico Thomaz Gollop, diretor da Sociedade
Brasileira para o
Progresso da Ciência e coordenador do Grupo de Estudo sobre o Aborto
afirma que em Pernambuco o aborto é a principal causa de morte.
Não
quero aqui minimizar a importância deste tema. Pelo contrário,
considero-o de suma importância, no entanto, creio também que o aborto
representa apenas um conflito de uma guerra muito maior que está diante de nós, uma guerra entre a visão cristã e as outras visões seculares sobre o valor da vida humana.
Neste artigo tenho por objetivo mostrar que o aborto é sempre mais do que aborto.[1]
É a estrada larga que conduz a sociedade a um rompimento com o
compromisso com a dignidade/santidade da vida humana. Que as outras
visões seculares sobre o valor da vida humana tendem a criar em nossa
sociedade uma verdadeira “Cultura da Morte”.
Chamo de cultura da morte aquela que garante a sociedade o direito de matar.
Não
pretendo o título de “profeta alarmista”, mas, olhando para o que
aconteceu nos EUA desde 1973, podemos ter um deslumbre de onde isto vai
nos levar. Vamos aos fatos.
Em 1973 a Suprema Corte dos EUA decidiu no famoso caso Roe contra Wade[2]
que um feto humano não é uma pessoa humana, portanto, não tem direito a
vida, sendo assim, é legítimo destruí-lo. A Corte sentenciou que o feto
não é gente e não tem nenhum direito em qualquer estágio da gravidez.
Somente a mãe é gente, com plenos direitos de privacidade e escolha. O
bebe no ventre da mãe pela ótica da cultura da morte, “pode” não ser
considerado como um bebe, e sim, como um intruso, alguém indesejado, um
agressor, um agente que milita contra a liberdade da mãe, um “demônio” e
por isso, matá-lo é o mesmo que agir em legítima defesa.
A
cultura da morte estabeleceu, ainda, que o aborto não deveria mais ser
tratado como algo terrível, e sim como um bem positivo, entre outras
coisas, uma maneira de melhorar a espécie, de garantir a liberdade e o
direito de escolha de cada um. O aborto passou a ser um método eficiente
de lidar com os problemas de superpopulação, possíveis defeitos
congênitos, gravidez prematura e etc. o aborto deixou de ser tratado
como um problema moral, criminoso e espiritual, sendo reduzido ao status
de “assunto de saúde pública.”
Do Aborto ao Infanticídio
Apenas
nove anos depois em 1982 agora com o “Caso do bebe” em Bloomington,
Indiana, EUA, a América ultrapassou a linha – de matar o feto vivo no
útero da mãe a matar o bebe vivo fora do útero da mãe – ou seja, do
aborto para o infanticídio.
O
bebe citado havia nascido com uma deformação no esôfago, o que tornava a
digestão impossível. No entanto, havia 90% de probabilidades de sucesso
numa cirurgia razoavelmente simples. Porém, os pais não autorizaram a
cirurgia, e os médicos concordaram, dois tribunais de Indiana se
recusaram a intervir no caso, mesmo cientes de que isso causaria a morte
do bebe. Seis dias depois o bebe morrera de fome. A razão para não
permitirem a cirurgia? O bebe também nascera com a Síndrome de Down.
Mais
uma vez “a cultura da morte é aquela que garante a sociedade o direito
de matar”. Ela diz que os pais devem ter permissão para matarem seus
filhos deficientes, com o argumento de que “eles” não são pessoas de
fato, porque não são auto-concientes. Sendo eles uma “não pessoa” são
substituíveis, assim como os filhotes de cachorros, cavalos, gatos e
etc, percebam que o argumento de “não pessoa” foi o mesmo utilizado para
dar as pessoas o direito de realizar o aborto, provando que o
fundamento desta filosofia de eliminar bebes defeituosos nasceu dos
debates sobre o aborto.
Do Aborto Ao Infanticídio – Do Infanticídio Ao Suicídio Assistido
A
cultura da morte vai ainda mais longe. Mais a frente, em 1997, o Estado
de Oregon foi o primeiro estado americano a legalizar o suicídio
assistido[3],
que foi aprovado em plebiscito. Daí você pode perguntar assim: o que
tem a ver aborto com eutanásia (suicídio assistido). Para responder a
esta pergunta é só observar os argumentos que foram utilizados. A
Suprema Corte utilizou-se do direito constitucional de aborto
(conquistado em 1973, no caso Roe contra Wade) para validar o direito de
suicídio assistido pelo estado. Mais que isso, elevaram ainda mais
quando usaram a seguinte definição de liberdade “... o direito de fazer
escolhas íntimas e pessoais... essencial a dignidade e autonomia
pessoal... o direito de definir o próprio conceito de existência,
importância, universo e mistério da vida humana” ora, o que poderia ser
mais íntimo e pessoal do que o direito de escolher viver ou morrer?
Garantindo o Direito de Matar
Mas
a cultura da morte não para por ai. O próximo passo é defender que
todas as pessoas incapazes e em qualquer idade, podem e devem ser
aniquiladas se assim for do consentimento dos seus familiares. No caso
de pessoas incapazes de darem o seu consentimento, autorização para o
suicídio assistido, um substituto poderá faze-lo. Mais uma vez uma
fronteira foi rompida, de morte desejada para morte indesejada, passaram
da eutanásia ao assassinato, como bem observou o teólogo Russel
Hittinger, dizendo “isso já não é mais o direito de morrer; é o direito
de alguns americanos matarem outros americanos”.
Recordando,
a cultura da morte foi se instalando primeiro com o aborto em caso de
estupro, depois por diversas razões; o próximo passo foi o infanticídio;
do infanticídio chegamos ao suicídio assistido, também chamada de
eutanásia, o próximo passo é assassinato de pessoas que não querem
morrer, mas de acordo com a sociedade suas vidas não valem a pena serem
vividas. A pergunta que você deve fazer é: o que motivou tudo isso?
O
que motivou tudo isso foi uma visão deturpada do valor da vida humana.
Uma visão construída nos pressupostos naturalistas que afirma que a
espécie humana não é superior a todas as outras espécies biológicas,
como bem afirmou Oliver Wendell Holmes[4]
ao dizer “não vejo razão nenhuma para atribuir ao homem uma diferença
importante de raça daquela pertencente a um balbuíno ou a um grão de
areia”.
De
acordo com a ética naturalista o corpo é apenas um instrumento para o
prazer e nós temos o direito de fazer com ele o que bem entendermos, sem
nenhuma importância moral, desde tirar a vida “do outro” seja o que
está no útero ou fora dele como tirar a nossa própria vida.
E
nós brasileiros, onde estamos? A legislação vigente no Brasil trata o
aborto como crime exceto no caso de violência sexual, neste caso a
legislação garante à mulher o direito de realizar o aborto até a 20ª
semana de gestação. Os discursos mais recentes (não agora nas eleições)
apontam para a descriminalização do aborto, equipando o Estado para
oferecer às pessoas gratuitamente meios para a prática, acabando assim
com as clínicas clandestinas, e por fim, reduzindo a questão do aborto
ao status de “assunto de saúde pública”.
Com
isso, a cultura da morte está com as portas abertas para fincar os pés
em nosso país. Estamos fazendo o mesmo caminho iniciado em 1973 nos EUA.
Os cristãos lutam contra o aborto. No entanto tentei mostrar que o
aborto é somente um conflito, fruto de uma visão distorcida da vida
humana, e que a guerra maior é entre a visão cristã e as visões
seculares sobre o valor da vida humana.
Como
este artigo não pretende de maneira alguma esgotar o assunto ofereço ao
leitor em poucas linhas uma visão que creio ser uma visão bíblica sobre
a vida humana.
Visão Bíblica sobre a Santidade/Dignidade da Vida Humana
Na
perspectiva bíblica Deus criou os seres humanos. Deus criou o homem à
sua imagem, e por isso, a vida é sagrada. Somente Deus pode definir os
limites da nossa existência.
Há pelo menos duas razões principais pelos quais o sexto mandamento deve ser obedecido.
1 – O homem foi criado à imagem de Deus
A
primeira razão é que o homem foi criado à imagem de Deus. Por isso, se
não queremos profanar a imagem de Deus, não devemos fazer nenhuma ofensa
ao nosso próximo, pois assassinar “é ofender a Deus e depreciar o
Criador.”[5]
A
doutrina da imagem de Deus é a razão por traz do sexto mandamento, e
também a razão pela qual principalmente os cristãos devem se preocupar
com o assassinato. O homem foi criado à imagem de Deus, e é esta
convicção diz Michael Horton “que nos vincula ao nosso próximo e aos
seus interesses, sem levar em conta se são crentes ou compartilham
nossos valores ou ética, herança cultural ou lingüística.”[6]
Em
Gênesis 9.6 temos a confirmação bíblica do que defendemos até agora, o
texto diz: “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se
derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem”, assim,
“o elemento mais hediondo no pecado de assassinato é o desprezo por Deus
ao destruir a vida humana, que porta a Sua imagem.” [7]
Comentando a passagem bíblica acima diz Hoekema:
A
razão pela qual o assassinato é descrito aqui em (Gn 9.6) como um crime
tão hediondo que deve ser punido com a morte é que o homem que foi
assassinado é alguém que refletia a imagem de Deus, era semelhante a
Deus e representava Deus. Portanto, quando alguém mata um ser humano,
não tira a vida dessa pessoa somente, mas ofende o próprio Deus que está
refletido naquele indivíduo. Tocar na imagem de Deus é tocar no próprio
Deus; matar a imagem de Deus é fazer violência ao próprio Deus.[8]
2 – A vida é um bem pessoal intransferível
Calvino chama o assassinato conforme descrito no sexto mandamento de um “despojamento de toda humanidade.”[9]
Nenhum
indivíduo, nenhuma organização ou sociedade tem o direito de legalizar o
assassinato de pessoas, a “valorização e proteção da vida como bem
pessoal proíbe de forma categórica o suicídio, a eutanásia, o
infanticídio, o feticídio e o genocídio.”[10]
Conclusão
Termino
este artigo chamando a atenção aos nossos deveres em relação a este
assunto. Recorrendo a confessionalidade presbiteriana, à nossa herança
reformada. Na pergunta 135 o Catecismo Maior de Westminster diz:
Os
deveres exigidos no sexto mandamento são todo o empenho cuidadoso e
todos os esforços legítimos para a preservação de nossa vida e a de
outros, resistindo a todos os pensamentos e propósitos, subjugando todas
as paixões e evitando todas as ocasiões, tentações e práticas que
tendem a tirar injustamente a vida de alguém...[11]
O
Catecismo nesta questão inclui toda forma de pesquisa e planejamento
voltados para a preservação da vida humana. Estudos científicos sobre
causas e prevenções de doenças, pesquisas na agricultura para uma melhor
produção de alimentos, construção de boas rodovias,[12]
endurecimento e cumprimento das leis evitando a impunidade dos crimes
contra a vida humana, a construção de bons hospitais, políticas públicas
sociais voltados para a preservação da vida.
Isto
que apontamos acima tem mais a ver com a sociedade num todo, mas há
também no mandamento o aspecto individual, a contribuição individual
para o cumprimento.
Segundo Martinho Lutero, quebra o mandamento todo aquele que podendo fazer o bem ao próximo não o faz; podendo protegê-lo nega-lhe proteção; podendo cobrir o nu, deixa-o passar frio; negando-lhe o alimento deixa passar fome. Por isso, Deus chama de assassinos todos os que deixam a morte chegar ao próximo. Embora, não cometa o assassinato com as próprias mãos, faz tudo para que o próximo caia no precipício. O sexto mandamento proíbe a raiva e a ira em geral, proíbe fazer mal a alguém seja com gestos seja com palavras. A intenção do mandamento não somente é privar-nos de assassinar, mas de consentir o mal aos nossos semelhantes, e que devotemos a ele amor.[13]
Segundo Martinho Lutero, quebra o mandamento todo aquele que podendo fazer o bem ao próximo não o faz; podendo protegê-lo nega-lhe proteção; podendo cobrir o nu, deixa-o passar frio; negando-lhe o alimento deixa passar fome. Por isso, Deus chama de assassinos todos os que deixam a morte chegar ao próximo. Embora, não cometa o assassinato com as próprias mãos, faz tudo para que o próximo caia no precipício. O sexto mandamento proíbe a raiva e a ira em geral, proíbe fazer mal a alguém seja com gestos seja com palavras. A intenção do mandamento não somente é privar-nos de assassinar, mas de consentir o mal aos nossos semelhantes, e que devotemos a ele amor.[13]
[1] Colson, 155.
[3] Suicídio assistido é o direito de cada cidadão tirar a sua própria vida com plena assistência do Estado.
[5] Hans Ulrich REIFLER, A ética dos dez mandamentos, p. 113.
[6] Michael HORTON, A lei da perfeita liberdade, São Paulo-SP: Ed. Cultura Cristã, 2000, p. 132.
[7] Johannes Geerhardus VOS, O Catecismo Maior de Westminster comentado, p. 425.
[8] Anthony HOEKEMA. Criados a Imagem de Deus, São Paulo-SP: Ed. Cultura Cristã, 1999, p. 29.
[9] João CALVINO, As Institutas, livro II.VIII.40.
[10] Hans Ulrich REIFLER, A ética dos dez mandamentos,p. 113, para ver mais detalhes págs 121-140.
[11] O Catecismo Maior de Westminster, p. 135.
[12] Hans Ulrich REIFLER, A ética dos dez mandamentos, p. 111, aponta que no Brasil uma das maiores causa de mortes tem a ver com acidentes de transito.
[13] Martinho LUTERO, Catecismo Maior, págs. 62-65.